O ano era 1979, e o mês, março. Recordo-me claramente de estar na sala da 8ª série B, última sala na ala direita da Escola Estadual Deputado Domingos de Figueiredo, o "Industrial", de Varginha. O ano letivo mal começara, e eu tinha novos colegas de classe que ainda nem conhecia.
Naquela manhã, Dona Aída, a secretária da escola - uma senhorinha de pouco mais de um metro de altura, mas cujo respeito obtido dos alunos era enorme, e que se fazia valer de discursos desmoralizantes - as suas famosas "descomposturas" - entrou em nossa sala e anunciou, sem muita cerimônia, que eu havia sido escolhido como o melhor aluno das 7ªs séries da região sob a gestão da regional da secretaria estadual de educação. E, como prêmio, iria à Brasília assistir a posse do que seria então o último presidente do regime militar, João Baptista de Oliveira Figueiredo, que ocorreria em 15 de Março. Dona Aída até detalhou o programa: iríamos em grupos até o Mineirinho, em BH, seguindo depois para Brasília. Com tudo pago pelo Governo: viagem, hospedagem e alimentação!
Foi uma festa na sala de aula: gritos, risadas, alegria. A professora de Português, Dª. Maria José, veio cumprimentar-me. Os colegas remanescentes da sétima série fizeram um auê danado, levando uma "descompostura" de Dona Aída, claro. Eu me recordo de ter um pacote de Halls cheio, pois havia recém terminado o "recreio", e distribuí generosamente com a turma... Não sobrou nada!
Naquele dia cheguei em casa exultante: mal podia conter a alegria! Fui correndo contar para minha saudosa mãe, que ficou orgulhosa e radiante, obviamente. Qual mãe não ficaria? Passei os detalhes recebidos de Dona Aída, segundo a qual eu deveria procurar as orientações sobre a viagem na secretaria regional de ensino. Minha mãe, de pronto, já me avisou que precisaria de roupas novas, claro. E sapatos! Afinal, seria uma memorável viagem até a capital do Brasil!
Logo após o almoço fui apressado até a tal SRE, que funcionava em um prédio nos fundos da Praça Getúlio Vargas, logo abaixo da antiga rodoviária. Eu era ainda muito tímido, e ficava muito vermelho quando precisava falar com estranhos. Pedir informação, então, era uma tarefa e tanto! Falei com a mulher da recepção, que disse-me não saber de nada, mas encaminhou-me para um andar qualquer. Cheguei em uma sala com duas mulheres e contei alegremente minha história, perguntando o que deveria então fazer. Veio então o choque: bastante displicente, uma daquelas mulheres disse-me que havia ocorrido um engano. Não era eu o escolhido, mas sim uma menina do Colégio dos Santos Anjos - o mais reservado da cidade, onde só estudavam meninas da mais fina sociedade do sul de Minas!
O choque foi tamanho que mal consegui ficar sobre minhas pernas. Faltou voz. Secou a garganta. Umas lágrimas começaram a correr... Com a voz meio embargada, agradeci e saí rapidamente, mas deu tempo de ouvir a mulher comentar: "tadinho, ficou tão chateado!"... A distância até minha casa aumentou, o sol parecia mais quente, e um silêncio mortal tomou conta de mim. Cheguei em casa e contei o ocorrido para minha mãe, que me consolou e disse: "Calma, deve ter havido algum engano. Amanhã você fala com a Dona Aída e a Dona Zaíra" - então diretora da escola - "e tudo será resolvido, você vai ver".
A noite não chegava. O amanhã não chegava. Mal consegui dormir. Fui apressado naquele dia para a escola, desesperado para ouvir que a notícia era verdadeira, que eu viajaria, sim! Qual o quê! Falei com a Dona Aída, que ficou de ligar para a secretaria e esclarecer o assunto. Alguns dias se passaram, e nada! Até que a Dona Zaíra chamou-me em sua sala e explicou, candidamente, que realmente "haviam se enganado lá na SRE, pois a melhor aluna era mesmo do Santos Anjos". Percebendo minha decepção e tristeza, tratou de consolar-me, pois eu era tido em alta conta por ela. Mas pouco adiantou... Fui embora mais cedo. Cheguei em casa totalmente acabado. Não conseguia entender aquilo... Fiquei tão abatido que mal conseguia comer. Queria sair da escola, parar de estudar...
Minha mãe fez algo impensável naqueles tempos: disse para eu tirar uma folga na escola. Como estávamos perto do carnaval, ela mandou-me para o sítio da Dona Filomena - sua comadre - onde regularmente passávamos férias. Fui eu, minhas irmãs Rosângela e Maria Aparecida. Todos "matamos" alguns dias de aula!
Minha irmã Rosângela já tinha suas economias, das nossas vendas de pastel e da venda de panos de prato que pintava, e então comprou um LP com os sucessos internacionais da novela Dancin' Days, que tinha recém terminado. O Márcio, filho da Dona Filomena, tinha uma "eletrola" Phillips, à pilha, na qual aquele disco ficava tocando à noite, enquanto conversávamos ou simplesmente ficávamos sentados à porta da sala, olhando as estrelas e ouvindo o barulho dos raros carros que passavam na rodovia à beira do sítio. Foram poucos mas memoráveis dias, aqueles! E saudosos! E foi o meu prêmio de consolação por ter sido preterido (ou substituído) na lista daqueles quase 12 mil jovens que ouviram, no ginásio de esportes Presidente Médice, o presidente João Baptista de Figueiredo discursar de improviso, às 15 horas daquele 15 de Março de 1979, como noticiado na mídia (Veja aqui)...
Pouco tempo depois, quando já estudava eletrônica na ETEV, fique sabendo da providencial manipulação havida na secretaria, pois afinal de contas "não era para Varginha ser representada por um qualquer na posse do presidente": tinha que ser alguém da elite, ora bolas! Como um menininho franzino, sem "pedigree", sem a menor "classe", poderia fazer jus a tal mérito??!! Quanta audácia!!!
Hoje, ao ouvir músicas como Night Fever, Stayin' Alive (Bee Gees), que faziam parte de um Dancin' Days Medley das Harmony Cats, ou então Scotch Machine (Voyage), Rivers of Babylon (Boney M.) ou Automatic Lover (Dee D. Jackson), tais lembranças retornam bem claras. Lembro-me daqueles dias, do Márcio e da Dona Filomena, Dona Aída, Dona Zaíra e de minha mãe, todos já falecidos... Guardo como recordação um LP semelhante, comprado muitos anos depois em um sebo de discos em Curitiba. E a mágoa de ter sido enganado e humilhado, nos meus tenros quatorze anos de idade, pelo "sistema", em razão do orgulho besta e da falta de caráter de alguns poucos.
Foi meu primeiro contato mais chocante com a corrupção, embora eu certamente não fazia a menor ideia disso, à época.